Em pleno devaneio, sobrevoei o bairro em que

nos conhecemos.

Foi lá que o nosso amor nasceu e também

foi lá que eu te disse adeus.

Os quarteirões continuam bem comportados e

na esquina dos encontros

ainda existe uma padaria.

 

Aquela sua árvore preferida, onde escavaste

as nossas iniciais entrelaçadas,

estava nua de folhas. Creio que está morrendo e

levando aquela cicatriz no tronco.

Os telhados ainda são acinzentados e

parece-me ter visto, em cada chão,

os nossos rastros,deixados há cinquenta anos.

 

Sobrevoei em sonho, de olhos abertos,

sobre mim mesma, na partida

súbita de algo que vivi e que fui...

que fomos. Virei um cisco no tempo,

no templo etéreo das lembranças.

Sobrevoei ruas, ruelas, becos e deixei

lá, para todo o sempre,

cada um de seus segredos.

Sobrevoei minha alma.

 

Na pracinha ainda existem flores,

mas não são iguais àquelas que colocavas

nos meus cabelos antes dos abraços e

dos beijos. Senti ali nossos cheiros

misturados, como as plantas náufragas

do pequeno lago, hoje tão maltratado.

 

Quantas vezes, encostados no muro da igrejinha,

perfuramos segredos vazados

nas luzes da noite! Eu me abrigava

no ninho do teu peito... e como era bom

o teu abraço! Agora, na imaginação,

minto carinhos, enquanto sinto a ausência

do teu corpo colado no meu.

Procurei o bimbalhar dos sinos,

mas ouço apenas grilos e cigarras.

Busquei o desmaiar das velas e

o murmurar dos hinos.

Achei apenas o que precisava:

o teu murmúrio ao meu ouvido

a dizer-me “te amo!”

 

Teu rosto parece esculpido em cada pilastra

do velho muro e na minha boca,

carrego a marca da tua boca, tatuada.

Também marquei teu rosto com meus beijos,

como se encostasse os lábios num teclado,

executando a mais bela sinfonia; um

fundo musical para os nossos momentos.

 

No meu sangue, nos pesadelos e nos mais doces sonhos,

ficou o sentimento cálido de estar comigo mesma,

mas com a sensação de estar contigo ainda.

 

Já não transfiguro o amargor das distâncias

no despertar de cada manhã.

Acordo e dou bom-dia à solidão do mundo,

feliz, porque mesmo acordada,

caminho com sorrisos e

braços estendidos ao teu encontro.

 

 

 

 

Midi : Tema do filme Em algum lugar do passado


 

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