Rosa não queria ficar presa como um inseto em alfinete, no outdoor de suas
realizações. Sonhava ser reconhecida no mundo da moda, pois era inegável o seu
talento. Desde a adolescência juntava retalhos numa caixa de papelão, desenhava
os modelitos e depois, os confeccionava com requinte de detalhes, para as
bonecas da sobrinha. Seu bom gosto, mais tarde, estendeu-se para as confecções
para si e para as irmãs. Morava em Copacabana. Quando deu por si, era braço
direito da mais famosa estilista do Rio de Janeiro, aos vinte e dois anos. A
confiança era tanta que, muitas vezes, marcava os vestidos no corpo das clientes
e os enviava para finalização das costureiras, sem o aval da chefe. Com medo de
que abrisse concorrência, a estilista prometeu-lhe o atelier e o nome da grife,
quando se aposentasse. Seria sua continuadora.
Nesse período, Rosa conheceu o amor. Foi algo avassalador. Era o dr Jorge, um
delegado. Ele fazia parte do júri de um desfile de modas. Foram olhos nos
olhos, o
oferecimento de uma rosa para outra rosa, um botão retirado de um dos inúmeros
arranjos florais do Copacabana Palace, onde ocorreu o evento. Um cartão com
telefone, um convite para um jantar. Aquele olhar tão penetrante, que parecia
desnudá-la, não lhe saía da mente. Telefonou e foram a um elegante restaurante.
Desse encontro surgiram outros. Era cinema, teatro, bailes, jantares...estava
apaixonada. Tornou-se sua mulher, o primeiro e único homem de sua vida, que
cobria-a de amor atenção, apimentados por muito ciúme. Como nem tudo é
perfeito, confessou-se casado, com dois filhos pequenos. Seus encontros se davam
sempre nos intermináveis plantões que ele arrumava na delegacia.
Um dia, ele chegou com a notícia: seria transferido para uma cidadezinha, bem no
interior do estado. Montou casa pra ela em Nova Iguaçu, mesma cidade onde a
família morava, para tê-la por perto, e como passava a semana inteira na nova
delegacia, bem longe, ela ficava lá, com ele. Nos fins de semana, ficava na casa
que ele comprou para ela e ainda o recebia, nas suas fugas à rua. E a
brilhante carreira no atelier? Foi jogada no lixo. Tudo em nome do amor. Tentou
costurar para fora, para preencher o tempo, mas ele não deixou. Não queria gente
entrando e saindo e a
queria disponível para quando ele quisesse. O máximo que conseguiu foi levar uma
irmã para morar com ela. Era quem ia à rua, fazia as compras, cuidava da casa
quando ela viajava com o amado.
Amava os filhos daquele homem por tabela. A irmã ia, tirava as medidas e as
roupas chegavam perfeitas, prontinhas com toques de modernismo e bom gosto,
inteiramente aprovados por dona Lourdes, a mulher oficial de Jorge. Logo ela
estava confeccionando cortinas capas de sofás e os melhores vestidos da dona da
casa. Cozinheira de mão cheia, também preparava os bolos, docinhos e salgadinhos
dos aniversários dos meninos. Todos queriam o endereço da perfeita cozinheira e
costureira. Jorge desconversava. Dizia que ela só fazia porque o marido
trabalhava com ele na delegacia e lhe devia favores, mas que não tinha seus
dotes como profissão. Vera, a irmã, sempre confirmou essa versão, junto à dona
Lourdes. “Faço
porque é pra senhora e para o doutor, a quem devemos muito. Ele leva o meu
marido em todas as suas transferências e sempre para funções gratificadas.”
Jorge prometia que quando os filhos estivessem crescidos, largaria a família e
se casariam. Surgiu um glaucoma num dos filhos, um descolamento de retina e o
menino perdeu muito da visão. Requeria cuidados e a busca de grandes
profissionais. Era imprescindível um pai por perto. Rosa chorava, ajoelhava,
rezava, fazia promessas para a cura do menino. Nessa lenga-lenga, os filhos se
formaram, casaram e tiveram filhos. Enquanto pequenos, os netos eram levados à
casa de Rosa, que cuidava deles com desvelo e muito carinho. Chorava muito
quando eles não podiam mais ir, pois poderiam contar o que viam.Fotos das
crianças se espalhavam por todos os móveis.
A
vida foi passando e ambos envelhecendo. Uma separação colocaria em jogo a
divisão de muitos bens comuns com Lourdes, lojas alugadas, apartamentos,
dinheiro, joias. Além de estar sempre com ele em todos os municípios por onde
passou, fez algumas viagens ao Líbano, terras dos pais de Jorge. A família de lá
a acolhia com muito carinho, pois nunca gostaram de Lourdes. Tudo o que vinha
dele, era plenamente acatado e aceito, em nome daquela felicidade recolhida de
migalhas.
Rosa tinha setenta e quatro anos quando Lourdes adoeceu e morreu. Acabou indo
morar na casa da falecida e assinaram em cartório uma união estável. Tudo
permaneceu como antes. Não ousou mudar um só jarro de lugar, pois seria um
desrespeito à morta. Até mesmo a empregada que servia à família há trinta anos,
continuava ali. Os filhos dele nunca a visitaram, sempre tiveram a intuição que
o pai tinha outra, nunca a certeza.Os netos, não. Esses iam e gostavam muito de
Rosa, viajavam juntos.
Quantos invernos, verões, primaveras, outonos juntos. Rosa chegou aos oitenta e
cinco e Jorge aos noventa. Ainda vivem. Ela com Alzheimer, ele, completamente
surdo. Bom tratamento e remédios caros ainda lhes permitem qualidade de vida.
Ele cuida dela como uma criança, com desvelo e carinho. Quando lhe perguntam se
valeu a pena largar uma sólida carreira de sucesso no mundo da moda, em momentos
de lucidez, ela diz que sim. Tentou com muita garra não fazer uma família
sofrer, de certo modo, doou-se a eles também. Que isso seja levado em conta no
juízo final. |