Essa será a última partida no jogo da nossa vida. Deixemos as cartas espalhadas
sobre a mesa. Elas podem esperar... nós, não.
Nossa vida sempre foi um jogo perigoso, um desejo passional e egoísta do prazer
pelo prazer, o deixar-se dominar pela paixão, por longos invernos e verões.
Só, meu caro, que o tempo também despe coisas, despiu horas, dias, anos.
Deixei de policiar o coração, repleto de desenganos, mas a dor mais profunda
ainda vem daquele amor tão enferrujado que nutri por ti... a vida inteira.
Por toda a vida, pisaste no vidro da minha sensibilidade que, estilhaçada, ainda
arde de dor, enchendo o meu olhar de solidão, talvez calejado de tanto se expor.
Nas flamejantes gotas de um passado que se faz presente, ainda me alimento.
A
memória continua sendo minha companheira de silêncio, trazendo para o meu hoje a
minha carne misturada em tua carne.
Foi tanto o que falei contigo, foi tanto o que falei de ti... e no entanto, sei
tão pouco! Resta só um combate a ser travado, pouco chão a ser pisado.
Quanto pranto, em meu rosto ressecado!
Mas o sangue ainda espera, nas veias mais sofridas do meu corpo, que ainda é teu
nesse momento.Na alma em desassossego, aninham-se espumas de nostalgia.
Em mim, náufraga em oceano de sombras, muitas vezes, a noite entornava
avalanches de trevas, escorrendo sobre colinas, inundando caminhos que um dia,
nos viram latejando felicidade, com desejos saciados, rumo à aurora, sem fim e
sem começo...
Por ti e para ti, vivi a morte em vida. Esforço-me por acolher sem espanto, sem
cólera, tudo que a vida me ofereceu. Sim, essa será, com certeza, nossa última
partida.
Que as cartas aí, jogadas sobre a mesa, nos esperem mais um pouco.
Jamais indagarei a Deus qual foi o motivo da minha misteriosa estada nesse
mundo. Mais dia, menos dia, a brisa desfolha a rosa. Um dia de lágrima, prepara
outro de alegria. Não me abandona nunca esse mágico incrível, que tem o cordão
que me manipulará e conduzirá à doce terra do esquecimento.
Dentre amargas esperanças acorrentadas, esqueço que em outras jogadas em que
venci, não logrei a recompensa, que sei, mereci.
Não lamento nada, não espero nada. Tudo que acontecerá, está escrito naquele
livro imenso que o vento da eternidade folheia ao acaso.
As antigas horas de extáticas contemplações são sempre lembradas, mesmo se os
olhos não veem, pois o pensamento consegue voar, nas formas, nas cores e nas
luzes do caleidoscópio que foi a nossa vida.
O
coração sente, a cabeça fantasia utopias e as asas brotam em mim. O corpo flutua
e percebe a beleza de ver e sentir além.Será meu grande e derradeiro voo.
Acho que já disse tudo,mas creio que, como sempre, não entendeste nada.
Era meu propósito deixar incógnitas para que decifres.
Vem, toma meu corpo agora. Essa é nossa última viagem, nossa inesquecível noite.
Ali na mesa, as cartas nos esperam para a última partida, onde, certamente,
pegarás o morto,farás muitas canastras, baterás o jogo.
Levarei tudo o que me pertence, mas te deixo o baralho. Acho que, em cada carta,
encontrarás a resposta para os teus inúteis questionamentos.
Só lembra que uma dama fica sempre entre um rei e um valete.
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